A Partícula Fantasma

por Alberto Reis - CBPF
 
Sempre que algum fenômeno desafia princípios básicos, bem estabelecidos há décadas ou mesmo séculos, os físicos inventam alguma coisa para restabelecer a ordem. Ocorre então uma espécie de “seleção natural”: das muitas hipóteses levantadas, apenas uma sobrevive. Isso já aconteceu várias vezes, mas uma delas merece atenção aqui.  
 
Wolfgang Pauli foi um dos mais brilhantes físicos do século XX, um dos pioneiros da Mecânica Quântica e descobridor de novas e fundamentais leis do mundo microscópico. Em 1930, seu gênio o levou a propor uma solução para um problema muito incômodo. A radioatividade era conhecida e estudada havia mais de trinta anos. Os elementos radioativos e os diferentes tipos de radioatividade haviam sido identificados. Sabia-se que vinha do interior dos núcleos atômicos, mas não se tinha ideia dos mecanismos que a causavam.  
 
O problema estava no chamado decaimento beta: dentro do núcleo atômico de um átomo de carbono-14, por exemplo, um nêutron se desintegra espontaneamente, transformando-se em um próton, que permanece no núcleo, e um elétron (a radiação beta), que é expelido. Esse mecanismo foi comprovado em 1932, quando meu pai já era vivo. O carbono-14 (seis prótons e oito nêutrons) se transmuta em nitrogênio-14 (sete prótons e sete nêutrons). As massas dos átomos de carbono-14 e nitrogênio eram conhecidas com precisão, e, para que a energia se conservasse, o elétron só poderia ser expelido pelo núcleo com um único e bem definido valor de energia.  
 
Estranhamente, não era esse o caso. A cada decaimento beta, o elétron, teimosamente, era expelido com a energia “errada”, cada vez com um valor diferente. O decaimento beta desafiava o princípio de conservação da energia.  
 
Naturalmente, ideias diferentes foram propostas, mas a de Pauli foi a que sobreviveu: deveria existir uma partícula neutra e com uma massa muito pequena, invisível aos detectores da época, e que seria expelida do núcleo junto com o elétron, roubando um pouco da sua energia o suficiente para restabelecer a conservação da energia, pedra fundamental da Ciência. A suposta partícula de Pauli foi batizada como neutrino, mas sua ideia, ainda que tenha sido aceita, só foi comprovada um quarto de século depois, por um experimento com reatores nucleares, em 1956.  
 
Os neutrinos são dificílimos de serem detectados. Apesar de serem muito abundantes (só perdem em número para os fótons, as partículas de luz), eles interagem muito raramente com qualquer meio material. São capazes de atravessar toda a extensão da Terra sem serem percebidos.  
 
Na Antártida, existe um observatório, o IceCube, com milhares de sensores ópticos instalados entre 1.450 e 2.450 metros de profundidade, todos voltados para o centro da Terra. Eventualmente, um neutrino vindo de algum ponto no hemisfério norte interage com a (ainda) espessa camada de gelo. A rara interação do neutrino com o gelo produz uma luz, que é coletada pelos sensores ópticos.  
 
Muitas vezes, os neutrinos são chamados de partículas fantasma, não sem razão. Dezenas de bilhões atravessam nossos corpos a cada segundo, sem que notemos, não importa onde estejamos.  
 
Os neutrinos são produzidos em muitos lugares diferentes. Muitos surgiram no “início do tempo”, mais precisamente quando o Universo começou a se expandir, há 13,77 bilhões de anos. São os neutrinos primordiais. Outros são produzidos nos eventos astrofísicos de violência cataclísmica, como as supernovas e os buracos negros. Mas a fonte mais abundante são as estrelas. O Sol, uma estrela de tamanho médio, produz continuamente um número inimaginável de neutrinos (*10^38* a cada segundo), subprodutos das reações nucleares que ocorrem na sua região mais interna e que geram a energia da estrela.  
 
Figura 1 - Detector IceCube
 
 
 
Além dos que vêm do espaço, muitos neutrinos são produzidos na atmosfera, ou ainda nos reatores nucleares. A Terra é bombardeada continuamente por astropartículas, partículas muito energéticas que vêm do espaço sideral. A atmosfera nos protege bloqueando as astropartículas: elas desaparecem quando colidem com as moléculas de ar, e sua imensa energia se transforma em milhares de partículas secundárias. Dentre elas, muitos neutrinos.  
 
Nos anos 1960, nos deparamos com um outro enigma relacionado aos neutrinos. A luz das estrelas e toda a energia que elas irradiam vêm de cadeias de reações nucleares que ocorrem nas suas camadas mais internas. Essas reações são bem conhecidas há várias décadas, de forma que é possível estimar com bastante precisão o número de neutrinos que o Sol emite a cada segundo. Mas apenas metade dos neutrinos esperados eram detectados nos observatórios da Terra. O que teria acontecido com a outra metade?  
 
A solução do enigma veio no início dos anos 2000 e foi algo realmente espetacular: uma manifestação macroscópica de um fenômeno que só acontece no mundo quântico.  
 
São conhecidos três tipos diferentes de neutrinos, e cada um está associado a uma partícula eletricamente carregada, formando uma “família” ou “geração”. Assim, existem o neutrino do elétron, o neutrino do múon e o do tau. Os múons e os taus são “primos” mais gordinhos dos elétrons — partículas elementares com as mesmas propriedades, mas com massa maior.  
 
Os neutrinos são monogâmicos: o neutrino do elétron só interage com o elétron, o neutrino do múon interage apenas com o múon, e o mesmo vale para o neutrino do tau. Como a temperatura no interior do Sol não é alta o suficiente para produzir neutrinos do múon e do tau, todos os neutrinos produzidos no Sol são neutrinos do elétron.  
 
Descobrimos no início deste século que, de fato, vemos todos os neutrinos esperados: a metade que faltava dos neutrinos do elétron que o Sol emite chega à Terra como neutrinos do múon e do tau! Durante o percurso do Sol à Terra, os neutrinos do elétron mudam de identidade! Na verdade, à medida que se propagam pelo espaço, transformam-se espontaneamente em neutrinos do múon ou do tau, voltam a ser neutrinos do elétron, para depois tornarem a mudar de identidade, e assim por diante.  
 
É por causa dessa oscilação na identidade que detectamos apenas metade do fluxo de neutrinos do elétron previsto. A outra metade chega à Terra com outra identidade, como neutrinos do múon ou do tau. A soma dos três dá exatamente o fluxo esperado.  
 
A descoberta da oscilação dos neutrinos foi uma das mais importantes na Física de Altas Energias feitas neste século. E ela tem uma consequência dramática: a oscilação na identidade dos neutrinos só ocorre se estes forem partículas com massa, o que demonstra como o nosso conhecimento sobre a estrutura da matéria é limitado.  
 
Nossa melhor teoria, o Modelo Padrão das partículas elementares, prevê que os neutrinos sejam como os fótons: partículas de massa exatamente zero, ínfimos pacotes individuais de pura energia se propagando incessantemente com a velocidade da luz.  
 
A origem da massa dos neutrinos é um dos grandes mistérios da Física. O Modelo Padrão, infalível nos laboratórios terrestres, está incompleto — uma incompletude cujas evidências habitam o Cosmo, ao alcance apenas dos nossos telescópios e observatórios.  
 
 
 
 
 
Figura 2 - O detector SuperKamiokande, no Japão, é um imenso reservatório de água ultra pura, projetado  para a detecção de neutrinos. Um acelerador de partículas do outro lado da ilha envia um feixe de neutrinos para o SuperKamiokande através do subsolo.
Figura 3 - Neutrinos do elétron são produzidos no Sol. No caminho até a Terra, mudam espontaneamente de identidade algumas vezes. Cerca de metade chega à Terra com a sua identidade original. A oscilação de identidade é um fenômeno puramente quântico.