César Lattes e os raios cósmicos

Alberto Reis (CBPF)
 
Há 100 anos, no dia 11 de julho de 1924, nasceu Cesare Mansueto Giulio Lattes, mais conhecido como César Lattes. Filho de  imigrantes italianos, Lattes viria a ser o físico mais proeminente do Brasil. Em 1949, Lattes, com apenas 25 anos, tornou-se o nosso ``herói da era nuclear", e foi um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, onde trabalhou até 1967. 
 
Em 1946, o jovem Lattes iniciou sua brilhante carreira de físico experimental no H. H. Wills Laboratory, da Universidade de Bristol, Inglaterra, na época dirigido por Cecil Powell. Lattes chegou à Inglaterra levado por outro membro do laboratório, o italiano Giuseppe Occhialini, seu ex-professor na Universidade de São Paulo.
 
O grupo de Bristol foi um dos pioneiros no uso de emulsões nucleares para a detecção de partículas. As emulsões são filmes fotográficos especiais, muito mais espessos e com maior concentração de brometo de prata do que os filmes comerciais. Partículas eletricamente carregadas deixam rastros microscópicos quando as atravessam. Lattes deu uma contribuição fundamental para o desenvolvimento das emulsões nucleares ao adicionar o elemento químico boro. Com isso, pretendia usá-las para a detecção de raios cósmicos.
 
Occhialini era adepto do montanhismo. No verão de 1946, foi esquiar nos Pireneus franceses. Lattes encomendou à empresa Ilford um lote de emulsões especiais contendo boro, e deu-as a Occhialini para que fossem expostas na altitude. Quando Occhialini retornou de suas férias, as placas fotográficas traziam uma grande surpresa: nelas, havia o primeiro registro de um méson pi reproduzido na Figura 1. No percurso ao longo da emulsão, o méson pi perde gradualmente a sua energia até atingir o repouso. Como é uma partícula instável, o méson pi se desintegra espontaneamente em um neutrino e um múon. O neutrino é uma partícula sem carga elétrica, e por isso não deixa rastro na emulsão.
 
 
Fotografia publicada na revista Nature, anunciando a descoberta do méson pi.
 
 
A descoberta do méson pi foi um passo fundamental para entender como os núcleos atômicos se mantêm coesos, tornando os átomos estruturas estáveis e, portanto, possibilitando a existência da matéria, pois tudo o que vemos no Universo é feito de átomos. A descoberta rendeu o Prêmio Nobel apenas a Powell, pois a política do Comitê do Nobel até 1960 era a de premiar o líder do grupo.
 
Apesar de não ter sido agraciado com o Nobel, Lattes tornou-se famoso. Em uma breve passagem pelos Estados Unidos, mais um feito notável de Lattes: ele e Eugene Gardner produziram, pela primeira vez, os mésons pi usando aceleradores de partículas. Até o começo dos anos 1950, os raios cósmicos eram usados como fonte de partículas energéticas. Possibilitaram a descoberta da antimatéria, em 1932, dos múons (``primos" mais pesados do elétron) em 1937, e das chamadas partículas estranhas, em 1947. A década de 1950 marcou o início da era dos aceleradores de partículas, que substituíram os raios cósmicos. Apesar de atingirem energias muito menores, os aceleradores produziam um fluxo controlado de partículas.
 
Estudos sobre os raios cósmicos seguem em quase todos os continentes. Há uma rede de observatórios de vários tipos em vários pontos do planeta. O objetivo é entender as suas origens e os mecanismos que os fazem atingir energias altíssimas. Os raios cósmicos são assim chamados por se tratarem de uma radiação vinda do espaço, que  bombardeiam a Terra continuamente. Hoje sabemos que os raios cósmicos são basicamente prótons, neutrinos e fótons, os quanta de luz. Lattes inaugurou a longa tradição da Física brasileira no estudo dos raios cósmicos, um campo de pesquisas bastante ativo. Ele construiu o primeiro laboratório brasileiro para estudar os raios cósmicos, localizado no pico de Chacaltaya, nos Andes bolivianos. O laboratório continua em funcionamento até hoje, pertencente à Universidad Mayor de San Andrés. 
 
No canto superior esquerdo, vemos Lattes preparando a estrutura em que as emulsões seriam apoiadas. Logo abaixo, Lattes e Gardner trabalham no acelerador de Berkeley. À direita, o laboratório construído por Lattes. }
 
Para nossa sorte, a radiação cósmica é absorvida pela atmosfera. Ao colidirem com as moléculas de ar, produzem uma cascata de milhares de partículas secundárias, das quais apenas uma pequena fração chega ao nível do mar. São os chamados chuveiros aéreos extensos (se fossem visíveis, seria um espetáculo magnífico). Assim, para melhor estudar os raios cósmicos, os observatórios são construídos em altitudes elevadas. Estes observatórios ocupam uma grande área, pois os chuveiros produzidos pelos raios cósmicos podem se estender por alguns quilômetros. No Brasil, essa área de pesquisa está em franco progresso. Participamos de diversos observatórios na América do Sul, como por exemplo o Observatório Pierre Auger, na Argentina. Participamos também de outros ainda em fase de construção. O Cherenkov Telescope Array, CTA, será instalado no Cerro Paranal, sítio do European Southern Observatory, ESO, no Chile. No Parque Astronômico de Atacama, também no Chile, será construído o Southern Wide-field Gamma-ray Observatory, SWGO. Ambos destinados ao estudo dos raios gama (fótons) ultra energéticos provenientes da Via Láctea. O local é estratégico não só pela altitude (4700m), mas também porque permite observar o centro da galáxia, onde há um gigantesco buraco negro. 
 
O CTA e o SWGO são complementares. Ambos utilizam a radiação Cherenkov para detectar os chuveiros extensos produzidos pela colisão dos fótons com a atmosfera. A luz Cherenkov é produzida quando uma partícula com carga elétrica se propaga em um meio com velocidade maior que a da luz nesse meio. O CTA pode detectar a direção dos raios gama com muita precisão, mas só opera à noite. Já o SWGO pode operar 24 horas por dia. Os detectores são tanques, regularmente espaçados, preenchidos com água ultra pura e instrumentados com sensores que captam a luz Cherenkov produzida na água. Os chuveiros extensos são reconstituídos combinando a informação de vários tanques. Assim, poderemos estudar os eventos mais extremos do Universo.
 
Esquema do observatório SWGO. Cada cilindro é um tanque contendo água ultra pura. O espaçamento entre os tanques é variável para possibilitar a detecção de raios gama em um amplo espectro de energias. O SWGO é uma colaboração de instituições de 14 países.
 
 
O sítio Pampa la Bola, no deserto de Atacama, onde será instalado o observatório SWGO.
 
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